quinta-feira, 26 de agosto de 2010














Paixões obsessivas; transgressão; perda; morte; sobrevivência. 


Há algo mais, claro. Paixões obsessivas são vistas com uma proximidade rara, um tremendo grau de carinho e compreensão, sem dúvida até um certo fascínio. Nada mais belo para uma estória que envolver paixões arrebatadoras, claro. Mas o caso aqui não é de florear as estórias – é a própria base delas. As estórias de Almodóvar partem de paixões morbidamente enlouquecidas – sem dúvida as paixões fogosas de Antonio (às vezes chamado de Ángel) de A Lei do Desejo, do Ricky de Ata-me, do Victor de Carne Tremula e de Benigno em Fale com Ela, mas também as paixões magoadas ou perdidas da Pepa de Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos, da Leo de A Flor do Meu Segredo, da Manuela de Tudo Sobre Minha Mãe e de Lydia e Marco em Fale Com Ela.

É bom esclarecer – não há aqui desejo sem paixão. Pode haver tesão, mas não desejo. A produtora de Almodóvar se chama El Deseo (foi aberta à época de A Lei Do Desejo). Mas o assunto não é tesão – é desejo desvairado. Sexo deve funcionar para fazer o outro enlouquecer de paixão (querem ser os melhores fodedores do mundo Antonio, Ricky e Victor). Não há paixão amena, tampouco.

O tema da perda amorosa é assunto de tudo – mais do que de cinema, de vida. Personagens lidando com perdas são um caminho natural para um cinema que se pretenda ligado a sentimentos.

A transgressão não acontece por represália ou confronto – cada um é como é, é como acredita que precisa ser, apenas isso. Policiais cheiram cocaína, homens se tornam gays ou travestis, pessoas de ambos os sexos transam sem preocupação com fidelidade – e isso não acontece por uma busca da transgressão, mas apenas de se agir de maneira a ser feliz (ao cheirar carreiras de cocaína em A Lei Do Desejo, o policial comenta que não lhe seria fácil viver sem um pouquinho daquilo...). Que não se confunda aqui, então, a postura do cineasta e de seus personagens – os personagens não transgridem por política, mas porque assim se sentem felizes e ninguém tem nada com isso. Quanto aos filmes, não é por acaso que buscam observar transgressões diversas – e, na maior parte dos casos, compreender. O desejo assassino é observado com fascínio (em Matador ou Kika), assim como a perseguição por amor, que se revela doentia em A Lei do Desejo e Ata-me, encontra versões mais carinhosas em Carne Trêmula e até Fale Com Ela.

A morte se liga à perda ou ao desejo, conforme a circunstância. Ou aos dois, por exemplo em Fale com Ela.

A sobrevivência, aprende-se. Em Mulheres à Beira de Um Ataque de Nervos, é bom notar. Pepa está grávida. E reaprende-se sempre, como notam em filmes recentes Leo, Manuela e Marco.

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Os filmes de Almodóvar. O circuito de cinema atual, que precisa convencer o espectador a sair de casa para pagar em média oito reais para ver um filme no cinema, tem hoje no nome de Almodóvar uma grife. As avaliações da grife dão conta do seguinte: os filmes de Almodóvar se domesticaram, não têm mais a mesma dose de transgressão a preconceitos sociais. Mas ficaram mais singelos e comunicativos. Talvez sim, talvez em parte. Essa visão grosso modo aponta a realidade de uma transformação evidente. Mas talvez se possa olhar com mais atenção para perceber o movimento que há entre seus filmes. Porque este movimento na carreira de Almodóvar pode ser visto sob a ótica do contexto a que cada um pertenceu, ainda que isso não deva funcionar como uma chave explicativa de toda a evolução. A obviedade que precisa ser lembrada é que os filmes não surgem do nada, se muda o mundo de que fazem parte, se muda o público que irá assisti-los, mudam os filmes também – não mudam apenas em função disto, claro. Mas pode-se, ao notar este movimento, enriquecer um pouco a compreensão acerca das diferenças entre A Lei do Desejo e Fale Com Ela, para lembrar exemplos extremos. É fácil agora saber o que esperar dos filmes de Almodóvar? Se fosse fácil, ainda seriam importantes ou ainda interessantes?

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Os filmes de Almodóvar. Sabe-se que seus primeiros filmes, curta-metragens feitos em super-8, ficaram célebres no período em que ocorreu a chamada Movida Madrileña, a efervescência social que tomou Madri na época do fim do franquismo. Entre 1974 e 1978, fez onze curta-metragens – seu primeiro filme, de quatro minutos, se chamou Filme Político, e alguns dos títulos dos curtas que vieram a seguir já mostram o ambiente de transgressão em que surgiam: Duas putas ou história de amor que termina em bodas, A queda de Sodoma, Sexo vai, sexo vem, Salomé (adaptação de 12 minutos da peça de Wilde), Fode... fode... fode-me Tim. O primeiro longa-metragem (feito também em super-8!), Pepi, Luci, Bom y otras chicas del montón, representa decerto a primeira ampliação de público – mas seu tom porra-louca já trouxe para o mundo um certo estilo transgressor e escrachado. Mais do que isso, trouxe a disposição para o enfrentamento de preconceitos arcaicos que caracterizaria seus filmes dali em diante.

É preciso que se abra parênteses aqui para lembrar a história espanhola. Francisco Franco subira ao poder em 1937, após uma guerra civil – e, vitorioso, implantou um regime fascista profundamente conservador, que sobreviveu por três décadas à queda dos ditadores que o ajudaram a chegar ao poder, Hitler e Mussolini, tornando a Espanha até certo ponto um país isolado da Europa que se pretendia mais democrática e do resto do mundo. Foi nesse país e neste momento histórico que nasceu e foi criado Pedro Almodóvar, na década seguinte à guerra. Além dos registros do que se fez no período da movida, há nos seus filmes também algumas referências ao que lhe interessava no cinema espanhol que o período franquista estrangulou: os filmes de terror (homenageia Jess Franco em Matador) e Luís Buñuel, talvez sua mais evidente fonte de inspiração (sobretudo o mexicano Ensaio de um crime, que, além de ter um tema próximo ao de Matador, é mostrado numa televisão em Carne Trêmula). Não custa notar que Buñuel rodou somente dois filmes na Espanha, um proibido e outro censurado (no caso, Las Hurdes e Viridiana), além de ter participado da produção do documentário da frente anti-fascista Madrid 1937. Não custa lembrar também que a Espanha de Velásquez e Goya ainda tem reis...

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O rompimento da barreira da exibição restrita do curta-metragem em super-8 aconteceu em Pepi... e se refletiu na proposta do filme seguinte, Labirinto de Paixões – que procura retratar, numa trama chanchadesca e repleta de personagens, aquele certo período em que era concebido. Abrindo-se a ser um registro euforicamente sentimental de uma época, Labirinto de Paixões já nos apresenta Cecilia Roth numa personagem chamada Sexilia (como Pepi já havia apresentado Carmen Maura) e Almodóvar se registra como participante daquele período – como um diretor de foto-novelas e cantor de uma banda de rock performática. Não poderia ser mais pessoal – estava registrando a banda a que pertencia de fato, cantando músicas suas, fazendo performances bizarras no seu próprio longa-metragem. Molecagem bacana, com certeza. Laberinto de Pasiones, mesmo tendo evidentes problemas narrativos (ou, sendo mais claro, tendo uma trama sem importância e sem pé nem cabeça), tem um charme único, é o tipo de filme que poucos podem fazer, que tem algo a mais do que simples idéias, consegue sugerir um certo espírito de vida próprio de um momento. Talvez, sob certo aspecto, seja seu filme mais rico e corajoso. Traz, além disso, um interesse recorrente nos seus filmes: aqui aparece o fascínio pela paixão obsessiva.

Seguiram-se a agressão cômica Maus Hábitos – em que freiras têm as piores, as menos católicas e as mais bizarras atitudes – e Que fiz eu para merecer isso, para já vir à tona uma maestria narrativa impressionante em Matador, onde se define o círculo narrativo constante de seus filmes – transgressão, paixão obsessiva, perda/morte. A Lei do Desejo já repete isto, noutro tom: no que Matador é buñuelesco e hipnótico, A Lei do desejo é melodramático e intenso. Daí estava se processando uma nova e decisiva mudança de alcance de platéias. O cineasta da Movida que se tornara cineasta da Espanha agora era cineasta do mundo – do mundo dos festivais. Seu filme seguinte, Mulheres à beira de um ataque de nervos, ganhou imensa fama internacional e consolidou a imagem do cineasta que fazia filmes engraçados e bem coloridos com personagens latinos apaixonados e exagerados. É só isso Mulheres à beira de um ataque de nervos?

Mulheres à beira de um ataque de nervos talvez seja seu filme mais leve e palatável – não tem morte, a perda é amorosa – e, nesse novo movimento de tom narrativo, encontra-se pela primeira vez a chave final do caminho narrativo: transgressão, paixão obsessiva, perda e sobrevivência. Pepa está grávida.

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Abra-se outro parênteses então para lembrar o que poderia significar esta "imensa fama internacional". Matador já chamara a atenção em festivais, A Lei do Desejo ganhou prêmios e Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos foi um tremendo sucesso. Já existia há pelo menos duas décadas a estrutura de filmes internacionais, aqueles que, sustentados por exibições em festivais e pela divulgação dos nomes de seus atores e eventualmente diretores, conseguem boa distribuição mundo afora, possibilitando ocasionalmente o surgimento de um ou outro grande sucesso de bilheteria. Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos foi um destes sucessos eventuais, criou uma tremenda expectativa sobre o cineasta transgressor e debochado. Alguns riscos desse mercado de cult-movies e festivais é rotular autores (limitar, portanto) e estimular o desenvolvimento de certos cacoetes narrativos – o estilo autoral que caracteriza a carreira de vários cineastas e alegra os fãs nas mostras de cinema. Algo como o excesso de tempero que vicia o paladar (embora a comparação entre cinema e comida não seja das melhores). O risco de defender filmes de autor para se contrapor ao fast-food cinematográfico é que também este cinema pode acabar se tornando um fast-food alternativo, como já se percebeu. Seria bom saber o que esperar dos filmes de Almodóvar?



Ata-me é o gesto final deste momento de conciliação com um certo público internacional. Maestria absoluta na narrativa – a mais simples, até clássica, e a com menos personagens –, bom-humor, latinidade, amor obsessivo levando à transgressão. Um período se fechava – a grife Almodóvar já existia e as platéias ansiavam por mais do mesmo. Começa, até certo ponto, uma crise que aparece nos filmes seguintes, De Salto Alto e Kika. De Salto Alto, ainda que esteja longe de ser um filme sem qualidades, traz um certo conflito de tom – por um lado há um interesse pelos problemas de amor que precisam ser vistos em modo menor, por outro há uma exacerbação do tom transgressor à beira da escatologia. Um tom transgressor que parecia à época remeter mais aos desejos das platéias de festivais do que ao espírito de seus filmes anteriores , ainda que parecesse tatear os limites aceitáveis a estas platéias, mantendo a seu modo o espírito incômodo inicial. Kika leva essa sensação ao extremo – parece um pouco um recado do gênero "vocês querem transgressão e escatologia? – pois aí está". O tom é histérico, as obsessões temáticas são levadas a pontos extremos – a mídia invasiva, constante em diversos filmes, é representada por uma Victoria Abril que carrega uma câmera em seu capacete, o narrador de histórias sujas é um serial killer que mata para saciar o desejo, além do filme ter ficado conhecido por ter um estupro interminável...É quando se desenvolve de forma mais doentia o ciclo paixão mórbida, transgressão, morte e sobrevivência – mesmo essa última, o gesto de generosidade final nos filmes mais bem-sucedidos, é aqui uma fuga sem destino nem responsabilidade ou afirmação pessoal. Se Labirinto de Paixões era um filme problemático amável, Kika é o filme problemático desagradável, incômodo – de certa maneira, um grande elogio à transgressão.















Leo, a escritora interpretada por Marisa Paredes, protagonista do filme seguinte, A Flor do Meu Segredo, diz o seguinte: o problema é de cores. "Vocês querem colorido e tudo que eu escrevo sai negro". Escreve novelas baratas com um pseudônimo, é abandonada pelo marido, tem um texto negado pelos editores por ser muito agressivo e assina uma crítica devastando suas próprias novelas. Quem cuida dela, escreve outra crítica as defendendo e até passa a escrever suas novelas é seu amigo-amor Ángel. Em A Flor do Meu Segredo temos situações e personagens recorrentes que estavam sendo revistos ali – e outros que seriam revistos dali à frente. Leo, a narradora, se reencontra e se reconcilia consigo mesma e com seus propósitos. Daí se seguem Carne Trêmula, Tudo Sobre Minha Mãe e Fale com Ela, até o momento. O melodrama se faz sem pudor, com temas recorrentes (paixão obsessiva, etc, etc) e transmitindo tremendo interesse por seus personagens. Sem pudor tampouco das ligações com o cinema de autor ou qualquer viés besta de mercado: há alusões a clássicos do cinema, há também a incorporação de uma certa arte internacional (de teatro, dança ou música), assim como também há enredos envolvendo problemas de saúde, cheios de situações lacrimosas. Escapar desse pudor faz muito bem aos filmes. Podem voltar a se associar a seus personagens a ponto de compreender suas transgressões – sendo assim, aprende-se a ter dignidade vivendo com uma obsessão amorosa ou com uma deficiência física (Carne Trêmula), com a ambigüidade sexual (Tudo sobre Minha Mãe) ou com novamente a obsessão levando à agressão por desejo (em Fale com Ela). Estas atitudes trazem conseqüências dramáticas, principalmente no último caso, mas o interesse destes filmes é muito mais compreender os sentimentos que levam a isso do que apontar o que é certo ou errado – este olhar generoso é decisivo para este cinema. Se certamente o interesse que temos nos filmes citados é provocado por um brilho narrativo único, característico, com temas, personagens e situações recorrentes, este interesse também se fundamenta nessa generosidade rara que está na origem dessa narrativa.

É um caso, certamente raro, de realizador que, sendo bem-sucedido num certo viés e ganhando prestígio e boa distribuição, soube transformar seu cinema mantendo o que lhe parecia essencial – e tiveram boa receptividade os resultados da evolução que seu trabalho teve diante das circunstâncias. Pelas notícias recentes (neste estágio, ainda incertas), a previsão é de que logo venha aí La Mala Educación. Sabemos o que virá a seguir? Possivelmente paixão, perda, morte, sobrevivência. Mas não, não se sabe o que vem a seguir – a vida muda tudo, e há sempre a sobrevivência a se reaprender, sabe-se lá como...

Daniel Caetano

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