segunda-feira, 13 de setembro de 2010
O que eu fiz para merecer isto? por Vasco T. Menezes
O dia-a-dia de uma típica dona de casa madrilena. Viciada em anfetaminas (para conseguir ter energia para trabalhar também como mulher-a-dias), Gloria (Cármen Maura) vive num apartamento exíguo e sobrelotado com o marido, António (Angel De Andres-López), um taxista apaixonado pela cantora alemã de quem foi motorista, dois filhos que descobriram os benefícios monetários do tráfico de droga e da prostituição e a sogra avarenta que vende aos restantes membros da família madalenas e água com gás. Há ainda a vizinha prostituta (Verónica Forqué), um polícia impotente, dois escritores falhados e alcoólicos, uma criança com estranhos poderes mentais e um lagarto de estimação chamado “Dinheiro”…
“Que Fiz Eu para Merecer Isto?” (1984) é o quarto filme de Pedro Almodóvar, provavelmente o realizador espanhol mais internacionalmente aclamado desde Luis Buñuel. Por esta época, os Óscares e o reconhecimento de Hollywood ainda vinham longe e Almodóvar era “apeuma das figuras de proa da “Movida”, o movimento contracultural surgido em Madrid no final dos anos 70 como reacção ao final da ditadura franquista.
Nesses primeiros tempos a Espanha permissiva e democrática, o realizador fez um pouco de tudo, desde o teatro à BD, passando pela escrita e o cinema em Super-8 (ao mesmo tempo em que, durante o dia, trabalhava na Companhia Telefónica Nacional…), assumindo-se desde o início como um observador atento e mordaz da realidade espanhola, dos seus vícios e peculiaridades, num tom provocatório e ousado.
“Que Fiz Eu…” fica então como um dos melhores exemplos desse cinema neurótico e dinâmico, fazendo gala de uma sensibilidade marcadamente “camp” e “kitsch” (ainda hoje presente nos filmes mais recentes e “sérios” do cineasta) e pondo em cena uma galeria irresistível de personagens excêntricas.
Numa sucessão de “gags” tresloucados por onde passa um humor absurdo e negro, entre o grotesco e o escabroso, Almodóvar propõe uma visão satírica e subversiva das relações familiares e pessoais na sociedade moderna. É um objecto delicioso e inclassificável — da farsa ao drama, da comédia ao fantástico — que mistura, de forma improvável, Buñuel, De Palma, Wilder ou John Waters.
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