Pedro Almodóvar é hoje considerado um dos melhores diretores a explorar na tela todo o lado feminino. Variando do sutil ao excêntrico, o cineasta consegue criar atmosferas únicas em seus filmes ao concentrar em suas lentes o belíssimo, complexo e singular universo feminino, e não me refiro aqui a apenas mulheres, mas qualquer pessoa que seja altamente envolvido por esse círculo, como maridos, filhos e até transexuais. Não foge ao olhar de Almodóvar nem mesmo uma das mais emblemáticas figuras do nosso mundo, as freiras. Essas mulheres, conhecidas principalmente por sua missão de renúncia a uma vida material enquanto abraça um matrimônio espiritual e tarefas humanitárias, sempre foram mitificadas pelas vidas que levam. Afinal, é no mínimo misteriosa a dedicação diária delas em ajudar o próximo abrindo mão de conquistas naturais ao ser humano, principalmente o amor idílico. Fora tudo isso, pouco percebemos que debaixo do véu tratam-se de mulheres comuns, seres humanos apenas, que embora levem uma vida de disciplina e renúncia, sentem os mesmos temores e passam pelos mesmos anseios. É assim que acompanhamos a vida das freiras do convento das "redentoras humilhadas", sem qualquer cliché, sem qualquer iconoclastia ou fundamentalismos.
Yolanda Bel, uma cantora de cabaré, vê sua vida de cabeça para baixo quando o namorado morre de overdose. Completamente desamparada, sem norte na vida, procura ajuda no convento das redentoras humilhadas após a visita da madre superiora no seu camarim. Admiradora fervorosa do trabalho marginal de Yolanda, a irmã passa a ajudar a cantora a encontrar sentido na sua vida dentro do convento, no dia a dia das freiras, na meditação, trabalho e dedicação espiritual. O convento já foi abrigo para muitas mulheres desamparadas, de vidas extremamente difíceis. Muitas foram as cafetinas, as drogadas, as prostitutas e até assassinas que lá se refugiaram para tentar encontrar um norte na vida. Agora, porém, o convento já não recebe tantas mulheres, já não se ouvem mais os cantos e as conversas daquelas que procuravam consolo. Os tempos mudaram, como atesta a amiga de uma das freiras, e a vida atrás das paredes do convento não permitiu a elas perceber que já não são mais o principal meio de ajuda para mulheres que se encontram em crise. Assim, quando Yolanda Bel procura ajuda à madre, esta última sente novamente esperança em ver o convento cheio de garotas e senhoras carentes de ajuda. Como as freiras acreditam na humilhação para edificação espiritual, elas se dão nomes bastante "impróprios", assim, passamos a acompanhar o dia a dia da irmã Esterco, irmã Perdida, irmã Víbora e irmã Rata de Esgoto.
O que é mais notável no longa é que as irmãs tinham raízes na vida libertina assim como as mulheres a quem ajudam, e como freiras, foram obrigadas a abdicar desse estilo de vida. No entanto, são muitos os "maus hábitos" que essas mulheres ainda mantém. É comum portanto encontrarmos uma irmã lendo contos eróticos, outra costurando roupas incomuns para as virgens, e até mesmo a madre superiora oferecendo cocaína à cantora refugiada em vez de livrá-la do vício. Desmascaradas aos olhos dos espectadores, as freiras e suas manias pouco comuns conduzem situações bastate divertidas, como a cena em que a irmã Esterco visita sua parente quando esta dá uma entrevista sobre sua carreira como escritora, ou quando as religiosas estão trabalhando numa feira de rua. São situações ligeiramente cômicas, de muita sutileza.
Ao longo da projeção percebemos o quanto o roteirista foi cauteloso em atribuir às freiras um intrincado jogo de idéias para que estas se auto-afirmassem como servas do senhor, mas com alguns deslizes permissíveis devido a suas naturezas humanas. Dessa forma, temos justificativas dígnas de um texto barroco, em que a lógica não se sobrepõe às palavras, como quando a madre superiora justifica porque ela continua a usar cocaína - "a cocaína é forte, assim como minha personalidade", ou como quando a mesma justifica porque ela é admiradora confessa de pessoas de vida tão leviana, de cantores de cabaré, dançarinas, atores e atrizes de segunda - "é no pecado dessas pessoas que Cristo morre e renasce a cada dia". Embora o diferencial do filme esteja no fato de se expor os maus hábitos do convento das redentoras humilhadas, jamais se faz qualquer julgamento das mesmas. Almodóvar prefere conferir uma imagem mais humana, do ponto de vista da imperfeição, a essas mulheres. Só assim podemos entender as dores de algumas delas, mesmo que sejam engraçadas algumas situações. Assim, o diretor jamais torna as personagens simples seres desprovidas de crises, nem as deixa se tornar caricaturas para o riso fácil. Antes, prefere conferir a cada uma das pessoas no convento uma altenticidade feminina, como de praxe em seus filmes. Depois do primeiro momento, em que olhamos para aquelas senhoras apenas como freiras, acompanhados do costumeiro espanto ao vê-las envolvidas em atividades tão pouco comuns, enxergamos em cada uma delas uma mulher de verdade, pessoas que não desvencilharam totalmente de seus vícios, mas que justificam os mesmos de alguma forma, ou se martirizam quando se trata de algo do qual não podem lidar. A figura mais forte do loga é com certeza a madre superiora. Com muita determinação, esta é capaz de usar quaisquer artifícios, mesmo os menos morais, para manter de portas abertas o convento que pode ser fechado pela ordem superior das irmãs. Ao mesmo tempo percebemos a dedicação desta para com Yolanda com um olhar não de amor solidário, mas de dedicação idílico-amorosa; como se Yolanda fosse sua janela para o mundo ao mesmo tempo que uma mulher atraente.
Volto a afirmar que o filme jamais trata as freiras de forma jocosa ou ironizadora. O objetivo de Almodóvar não era criar situações que coubessem julgamentos. Portanto o espectador deve se despir de qualquer preconceito ou opinião formada sobre a vida dessas mulheres. Não é um filme que faz qualquer crítica sobre a igreja, sobre a vida nos conventos, ou sobre os próprios vícios das irmãs. O que temos no longa é na verdade um tratamento mais feminino sobre as freiras, despido de qualquer exaltação religiosa. O importante não é julgar, mas entender e divertir-se com aquilo que imaginamos ser incomum.
Verdade seja dita: não espere risos fáceis em Maus Hábitos. O filme não é uma comédia excêntrica como os adolescentes acostumaram a ver nos anos 2000 com filmes de situações forçadas e personagens pouco convincentes. Estamos falando de Pedro Almodóvar, um brilhante diretor do cinema contemporâneo, portanto a obra conquista mais sorrisos que risos. Temos ao longo da projeção situações hilárias, mas tudo no seu devido comedimento. Fica ao final um gosto indefinível, de uma comédia meio triste, mas a sensação de um ótimo filme, conduzido com maestria sobre um tema bastante delicado. Não, não se trata da religiosidade, mas de outro tema ainda tão complexo quanto, embora também bonito e indecifrável, o universo feminino.
PRÓXIMA QUARTA - 08/09 - 19 HORAS NA VIDEOTECA JOÃO CARRIÇO