sexta-feira, 28 de maio de 2010

Lixo, marginais e chanchadas por João Luiz Vieira




No final dos anos 60, a "redescoberta" da chanchada motivou caminhos para alguns dilemas enfrentados por nosso cinema, pelo menos em dois momentos simultâneos. O primeiro, dentro do próprio Cinema Novo, com a produção de Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade. O segundo, como uma demonstração de reação ao próprio movimento, com a produção dos filmes que ficaram rotulados de marginais ou udigrúdi, apropriação paródica para o termo em inglês. Em ambos, um forte ponto em comum: a presença de humor corrosivo, às vezes anárquico, expondo um gosto pela crítica social encontrada com freqüência no próprio discurso paródico. Tanto no filme de Joaquim Pedro quanto nos marginais, há o que se caracteriza como a "estética do lixo", literal e metafórica.

Já apontado por Robert Stam, testemunhamos o surgimento de uma variedade enorme de neologismos estéticos na América Latina e Caribe, dos quais a estética do lixo é mais um entre vários projetos que, em geral, reavaliam, pelo caminho da inversão de sentido, o que era tido como negativo no discurso colonialista. Tais projetos compartilham, "como numa luta de jiu-jítsu, o desejo de transformar a fraqueza estratégica numa força tática". Assim, encontramos uma variedade estimulante de propostas e formulações, que passam pelo cine imperfecto, de Julio Garcia Espinoza, pela "criativa incapacidade de copiar", conceituada por Paulo Emílio Salles Gomes, pelo real maravilloso americano, de Alejo Carpentier, pela "estética da fome", de Glauber Rocha, pela antropofagia de nossos modernistas ou pelo "terrorismo dos cupins", do mexicano Guillermo Del Toro.

Dentro da estética do lixo, a paródia tem um papel estruturalizante. Torna-se um mecanismo de criação. Só que o alvo satírico não era apenas o cinema estrangeiro, como havia sido na chanchada, nos anos 50, mas o respeitável Cinema Novo. Claro que o fato deste ter se tornado alvo de torpedos indicava seu triunfo nacional e internacional. Mas, para o Udigrúdi, o Cinema Novo havia se aburguesado, virado mercadoria respeitável, cauteloso em relação aos temas tratados e à experimentação com a linguagem cinematográfica. Enquanto o Cinema Novo buscava um esquema de produção maior, calcado em melhor acabamento técnico, este Novo Cinema Novo exigia a radicalização da estética da fome, rejeitando um "cinema bem feito" em favor da "tela suja" da "estética do lixo". Seria um estilo mais apropriado a um país pós-colonial, que transitava entre os detritos da dominação capitalista do Primeiro Mundo.

Muitos desses filmes organizam uma espécie de colagem de materiais achados, promovendo a noção de que o Terceiro Mundo só herda as migalhas do Primeiro. É nessa ótica que O bandido alude a filmes B americanos, através de inserções de fragmentos de uma ficção-científica ordinária, enquanto Blá, Blá, Blá, de Andrea Tonacci, usa cinejornais com cenas de passeatas em Pequim e Paris. Em A herança, Candeias carnavaliza a tradição da alta cultura, transformando Hamlet em faroeste, com os diálogos substituídos por sons de pássaros e animais. O bandido explora uma estratégia de conflito de gêneros, comum ao Cinema Marginal. O noir, o musical, o documentário, o faroeste, a chanchada e a ficção-científica surgem numa compilação de pastiches, espécie de escritura cinematográfica entre parênteses.

Segundo Ismail Xavier e Stam, o Udigrúdi demonstrou uma hostilidade edipiana em relação ao "pai", o Cinema Novo, identificado com clareza no filme de Júlio Bressane, Matou a família e foi ao cinema. Também O bandido adota recurso semelhante, como o fogo ateado à imagem de São Jorge que abre O dragão da maldade contra o santo guerreiro, de Glauber Rocha. O bandido ecoa, de forma irônica, a iconografia do cinema de Glauber. Na primeira seqüência, vemos crianças faveladas dançando em volta de fogueiras num lixão da periferia paulistana, ao som repetido do tema de candomblé de Terra em transe (1967). Sua narrativa também recicla materiais heterogêneos da "baixa" cultura popular, como programas de noticiário policial de rádio – com a voz estilizada e grotesca do locutor – misturado a matérias da imprensa escrita, programas de televisão e filmes B americanos. Resulta uma celebração-pastiche debochada. Tais produtos híbridos da cultura periférica e colonizada falam mais ao brasileiro urbano, maioria do público desses filmes, do que a cultura popular folclórica memorializada em muitos dos filmes do Cinema Novo. Sganzerla celebra a estratégia pós-moderna da bricolagem, em sintonia com o que defendia Bakhtin: a redenção do que era tido como menor, baixo, desprezado, imperfeito e lixo como parte de uma estratégia de subversão.

A hostilidade ao Cinema Novo pelo Cinema Marginal acabou por ressuscitar certos códigos da chanchada – desconsiderada pelos diretores do Cinema Novo. Talvez um questionamento consciente ao que era exaltado por este: a busca intelectualizada dos valores nacionais da alta cultura literária, como Vidas secas, de Graciliano Ramos, ou Menino de engenho, de José Lins do Rego. Não escapou também desse crivo o visual meio documental europeu, em preto e branco, câmera na mão, montagem elíptica, cheia de jump-cuts, como em Godard, Lindsay Anderson, Karel Reisz, Bertolucci ou Pasolini. Nem tampouco o estilo frio e distanciado de Antonioni – utopia máxima do cinema militante e socialmente consciente. Para o Udigrúdi, os pingos nos iis são colocados na declaração anárquica de que "quando você não pode mudar, você avacalha", no dizer do tal Bandido da luz vermelha.

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