segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Eraserhead




















Aparentemente, Eraserhead não tem significado algum. Eu acredito nisso. Escrever sobre esse filme é uma empreitada e tanto, já que, em determinado momento, a trama perde totalmente o controle, dando espaço a uma sucessão de imagens surrealistas dignas de comparação ao clássico Um Cão Andaluz, de Luis Buñuel, ou a projetos experimentais de nomes consagrados do cinema como Bergman ou Fellini. Seu realizador, David Lynch (para mim, o maior cineasta em exercício no mundo), se nega até hoje a pronunciar uma única palavra sobre ele — cabe ao espectador elaborar a própria interpretação. Eraserhead não se encaixa a qualquer gênero; já foi chamado de terror, comédia de humor-negro, drama, neo-noir, ficção científica, etc. Num plano geral, trata-se de uma alucinante viagem ao universo imperfeito e cheio de arestas da condição humana, esboço daquilo que se transformaria no mote essencial da carreira de Lynch.

A primeira parte, apesar de estranhíssima, é muito precisa com relação ao enredo: Henry Spence, um homem solitário e dono de um penteado — digamos — exótico, recebe o convite da namorada, Mary, para jantar na casa dos pais dela. Lá, descobre que Mary teve um filho seu, porém a criança veio ao mundo “deformada”. Os dois se casam e vão morar no claustrofóbico quarto do rapaz, localizado num bairro industrial com cara de campo de concentração abandonado. Vemos aí a inquietante imagem do bebê, algo mais similar
a uma cabeça de bezerro ou a um filhote de cabra. Em vez de repousar num berço, como se supõe, a criatura permanece enrolada no cobertor sobre uma cômoda, como se fosse mais um adereço daquela decoração lúgubre e decadente.

O grande atrativo vem na segunda metade, quando Lynch passa a rechear o filme de seqüências oníricas e indecifráveis, mais do que na primeira parte. O público desavisado observa tudo com estranheza, talvez com um pouco de choque. Uma segunda conferida é sempre recomendada, inclusive aos fãs habituais do diretor. Existe aqui a possibilidade de ilimitadas facetas, tal como em 2001: Uma Odisséia no Espaço, de Stanley Kubrick (célebre admirador de Eraserhead), nítida inspiração para a abertura e o desfecho cósmicos da obra. A imagem inicial de um céu negro, pontilhado de estrelas, com um objeto ao fundo — um planeta? um meteoro? uma lua? —, com o reflexo do rosto de Henry no primeiro plano, parece fazer anúncio a uma viagem galáctica. Entretanto, no lugar de uma nave espacial, vemos um tipo de ameba ou minhoca alienígena se contorcer num solo pedregoso e cair numa poça d’água. Mais insólito, impossível!

A fotografia kafkiana reforça o pesadelo cinematográfico da fita. O elenco e os cenários são constantemente espreitados por uma luz incidente, quase estourada, fatiada por sombras duras e chapadas. O preto-e-branco é explorado com eficácia na elaboração de uma atmosfera sinistra, fazendo um casamento perfeito com os demais artifícios técnicos. Lynch jamais experimentaria efeitos visuais e sonoros com tanta segurança novamente. O zunido de uma luminária, o bramir do vento, o choro do “bebê”, enfim, todos os sons que escutamos ao longo da narração, aliados a uma trilha musical de idêntica bizarrice, convergem-se numa experiência singular.

É interessante comentar que o filme levou meia década para ficar pronto. O diretor não dispunha de muito dinheiro, era então desconhecido. Assim, o ator Jack Nance teve de agüentar aquelas madeixas à la Noiva de Frankenstein por anos, entre a primeira tomada e a última — tomadas que ficavam cada vez mais espaçadas, até a verba total ser obtida. Concluído, o trabalho fez relativo sucesso no mercado independente e logo virou cult, fato corriqueiro na filmografia de Lynch, que inclui, entre outros, O Homem Elefante, Veludo Azul e A Estrada Perdida.

Descrever as imagens mais hipnóticas de Eraserhead seria impensável, pois extrairia o vigor da obra. Basta uma breve advertência: não espere um filme com começo, meio e fim. Longe de ser uma peça de contestação ou escândalo, é antes de qualquer coisa um poema abstrato, a obra seminal de um artista inventivo, amado e odiado. E David Lynch segue fiel ao intuito de escrever personagens prisioneiros de sua condição humana, buscando uma saída, seja ela por meio da morte, da loucura, da amnésia, de investigações, de viagens, etc. Com Eraserhead, ele mostrou a que veio e arrematou um de seus trabalhos mais pessoais, brindando-nos com planos de espantosa originalidade.

QUARTA - 08/12 - 19h no Anfiteatro João Carriço



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